Resumo |
Na nossa tradição gramatical, é comum associar anáfora e referência na definição dos pronomes. Ela pode ser observada nesta citação:
Pronome é a palavra que denota o ente ou a ele se refere, considerando-o apenas como pessoa do discurso. (Said Ali 1923: 61; apud Rocha Lima 1999: 110)
Esta associação chega até concepções mais recentes:
O pronome pessoal tem uma natureza fórica, isto é, ele é um elemento que tem como traço categorial a capacidade de fazer referência pessoal (Moura Neves 1999: 449)
Em alguns casos, fala-se de correferência e identidade referencial:
as AD [anáforas diretas] retomam referentes previamente introduzidos, ou seja, estabeleceriam uma relação de correferência entre o elemento anafórico e o seu antecedente. Parece haver uma equivalência semântica e sobretudo uma identidade referencial entre a anáfora e seu antecedente. (Marcuschi 2001: 219)
Contudo, estas definições não dão conta de exemplos em que o antecedente é um SN quantificado, como em (1), onde não há especificação de referente.
(1) Toda menina quer ganhar o brinquedo que ela ainda não tem.
Era de se esperar que concepções referencialistas, como as de Said Ali e de Moura Neves, atribuísse ao pronome apenas uma interpretação dêitica: `toda menina quer ganhar o brinquedo que alguém (do sexo feminino e contextualmente indicada) não tem'.
Mesmo em interpretações correferencialistas, como a de Marcuschi (que poderiam identificar melhor uma dependência entre o pronome e seu antecedente), a equiparação entre pronome e antecedente é equivocada: como o SN toda menina não é referencial (não designa ninguém nem mesmo indeterminadamente, como sugere a classificação tradicional de toda como pronome indefinido), e sim quantificacional (é uma instrução para percorrer o domínio, que só é bem sucedida quando todos os que satisfazem a restrição a denotação de menina, no nosso caso também satisfizerem o escopo o predicado quer ganhar o brinquedo que ela não tem), não há um referente do qual ela pudesse ser correferente.
Devido à quantificação, seria mais coerente conceber a anáfora como covariação: o anafórico herda a atribuição de valor semântico variável imposta a seu antecedente. Isso daria conta tanto da identidade referencial (em (2), a covariação seria trivialmente satisfeita por não haver o que variar), quanto da dependência com o antecedente quantificado (em (1), a interpretação de ela covaria de acordo com a instrução imposta pelo quantificador universal).
(2) Maria quer ganhar o brinquedo que ela ainda não tem.
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