Resumo |
O discurso se constrói nas práticas sociais, veiculando o dito, cobrindo o signo com novos sentidos, em uma ininterrupta tessitura de valores, na qual é possível apreender o jogo de intenções, de implícitos, de subentendidos, que afirmam verdades, que as polemizam, que explicitam e/ou mascaram preconceitos, enfim, que desvelam a inquietação da alma humana em busca do autoconhecimento. A partir de um enfoque metodológico linguístico-discursivo, amparado nos estudos da Filosofia da Linguagem, especialmente em Mikhail Bakhtin, e da Teoria da Linguagem, dando prevalência às teorias de Karl Bühler e Käte Hamburger, este trabalho pretende examinar os recursos de expressão que atuam como instrumento de veiculação do preconceito e de condenação do outro ao ostracismo. Vestido cor de fogo, conto de José Régio, publicado pelo escritor português em 1946, é o corpus escolhido para esta análise. No exame do texto, observaremos que os circunlóquios, as expressões dubitativas, as frases truncadas e, em particular, a dêixis manifestam um posicionamento machista e preconceituoso da personagem-narrador, fundamentado na concepção patriarcal. Desta perspectiva, ele constrói uma imagem idealizada da mulher que não se ajusta à pessoa de Maria Eugênia, sua esposa. Mediante a rememoração, o marido, que não é nomeado, assume a instância narrativa e resgata o passado, imbricando com valores do presente. A distância temporal entre o eu narrante e o eu narrado (termos cunhados por Stanzel) não produz uma mudança existencial no protagonista, ao contrário, da intrincada dialética entre os preconceitos burgueses alicerçados no mito marial e a intensa atração pela esposa, mascara-se o conflito entre o espiritual e o carnal, erige-se um retrato míope da realidade, em que o narrador-personagem pretende distinguir a pretensa vida marginal da esposa, da sua, embalada por motivações moralistas que trazem à rédea seus conflitos interiores, suas frustrações. No exame dos mecanismos de expressão mencionados, mostraremos a tensão do protagonista, que se distancia da realidade prosaica e se fecha para o mundo outro: nega-lhe a voz e condena-o ao ostracismo. |