Resumo |
Trata-se de uma leitura do romance Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, com base nas teorias estéticas propostas por Wolfgang Iser e Paul Ricoeur. Mais especificamente, trata-se de pensar a relação entre o texto ficcional e a realidade, mediante as orientações acima referidas. Para Wolfgang Iser, a relação do texto ficcional com a realidade pressupõe da parte do escritor dois procedimentos inevitáveis de escritura: a seleção e a combinação. A seleção é considerada uma transgressão, uma vez que consiste no recorte, por assim dizer, de elementos do real e do deslocamento destes elementos de seu contexto original, inserindo-os num contexto outro que, embora mantenha sua referencialidade, não corresponde tal e qual ao contexto originário, isto é, à realidade. O segundo procedimento, a combinação, assim como a seleção, também consiste numa transgressão de limites, que abrange tanto a combinação dos significados verbais, a elaboração do mundo do texto, bem como a organização dos personagens e de suas ações. A escrita de Sade é, assim, toda ela transgressão, uma vez que, como poderemos observar, a combinação dos elementos selecionados se diferencia radicalmente da maneira pela qual esses mesmos elementos aparecem distantes na realidade, e em alguns casos, constituem mesmo uma oposição, como ocorre com a insistente conjunção entre ato sexual e instituição católica. No caso de Paul Ricoeur, a evidência da ficcionalização recai sobre uma relação, cujo termo de contato é o leitor, isto é, interessa para o teórico o modo pelo qual a realidade perpassa a ficção e a ficção perpassa a realidade, tanto enquanto realidade de onde se parte, quanto como realidade (reelaborada) para onde se chega. Nessa relação, a ficção assume uma certa autonomia, o que autoriza Ricoeur a falar em mundo do texto. De acordo com Ricoeur, em qualquer texto de ficção, deve estar inscrito o seu caráter ficcional. Isso aparece num texto de diversas maneiras. Uma delas, como já mencionado, por meio dos procedimentos de seleção e de combinação. Outra forma que a ficção tem de se autodefinir, é por meio da metalinguagem, artifício este bastante presente em Os 120 dias. Veremos, por fim, de que maneira os procedimentos supracitados ocorrem no romance sadiano. |